Carta escrita ao amigo Moacir C. Lopes, que teria completado 90 anos naquele 2017. Acabei não publicando o texto, que aqui vai como forma de recomendar a leitura do romance A ressurreição de Antônio Conselheiro e a de seus 12 apóstolos.
“Canudos era imenso cemitério”.
Moacir C. Lopes
Prezado
amigo Moacir,
Só agora, passados 10 anos da publicação e
7 que nos deixou, venho lhe contar sobre minhas primeiras impressões que A ressurreição de Antônio Conselheiro e a de
seus 12 apóstolos me trouxe em primeira leitura. Aproveitei uma viagem a
Minas e uma pausa forçada no trabalho para enfim percorrer os caminhos e
descaminhos dos inúmeros personagens da obra, sertão a dentro. Nisto, aliás, e
pelo seu caráter histórico, me lembrou o O
almirante negro, Revolta da Chibata, a vingança, outra obra da qual gosto
muito.
A quantidade de narradores e a estrutura
da obra me trouxe também a lembrança de Crônica
da casa assassinada, do Lúcio Cardoso. Em companhia de Fogueteiro,
Jardelina, Pajeú e tantos outros, fui alinhavando a história do santo Antônio
Conselheiro e do terríveis combates travados no sertão. Difícil não se
arrebatar com tanto horror, quando diante de nossos olhos passam pessoas
decapitadas, corpos empalados à beira dos caminhos, rostos mumificados com o
semblante da morte, ventres rasgados e histórias de fetos arrancados das
barrigas maternas. Não há como não refletir sobre a força desmedida utilizada pelo
governo e sobre o universo social estabelecido em Canudos. Tal reflexão, no
entanto, advém pelos personagens vitimados e se alia ao ponto de vista do povo
a vencer e a ser vencido.
O tema da ressurreição, já presente no
título do livro, me fez pensar que o enredo poderia seguir caminho semelhante a
Onde repousam os náufragos. Enquanto
lia, fui imaginando a possibilidade de Conselheiro e seus doze apóstolos
ressuscitarem e tornarem a combater, vencendo a batalha impossível. Confesso
que fiquei surpreendido quando ao final a obra avança momentaneamente cem anos
e depois realiza digressão situando os personagens em lugares outros como nas
favelas do Rio de Janeiro. O caminho trilhado na obra é compreensível, pois me
pareceu que se lhe fez necessária uma certa adesão ao fato histórico.
Mas se o mítico, mesmo presente, não alça
voo na direção que desejei, a vereda trilhada é muito instigante, pois, de
forma alegórica, desenha a condição social do povo brasileiro, sempre subjugado
por uma elite injusta e poderosa. A dúvida da ressurreição, com o
estabelecimento de sósias de personagens, de combatentes escondidos em buracos
e sobre as árvores assombrando a missão dos soldados, é de fato um ponto alto
da obra.
A história da Canudos vai se
completando à medida que o leitor avança pelas várias versões dos narradores
acerca dos combates realizados. Confesso que algumas vezes considerei a
repetição de algumas cenas, nas várias narrativas, algo que tornou o enredo
lento ou, como já dado de antemão, revisitado. Indaguei-me um pouco também
acerca do conhecimento que todos os personagens tinham das batalhas futuras.
Mas são detalhes que não diminuíram, em minha leitura, a importância da obra.
Por sinal, quando as narrativas esquecem um pouco as expedições militares e o
cotidiano dos personagens surge de forma forte a obra apresenta o seu melhor
sumo.
Nesse sentido, merece atenção especial o
capítulo “Evangelho segundo João Abade”, também intitulado “A espada do
guerreiro”. Pareceu-me uma das melhores partes da obra, quando o histórico
enfraquece permitindo o fortalecimento do romanesco. Curiosamente, é quando um
personagem resiste um pouco a seguir os andarilhos rumo a Canudos. A estória de
João Abade se articula bem com Jardelina, outro universo ficcional de relevo na
obra, e, claro, com as mulheres relacionadas a ele.
Isso não quer dizer que as outras partes
tenham ficado aquém. Do contrário, revelam que o autor é um engenhoso criador
de personagens e que a quantidade deles não prejudica a constituição do todo.
Como em O almirante negro, funcionam
como condição necessária para que não roubem a atenção da dimensão histórica.
Lá, a Revolta da chibata. Aqui, a guerra de Canudos. Os episódios e os lugares
em que ocorrem passam a funcionar como verdadeiros protagonistas da obra, ou,
se quisermos, o conjunto dos inúmeros personagens.
Se Fogueteiro reencarnou em terras do sul
e outros personagens apareceram nas favelas do Rio de Janeiro, é sinal de que o
santo Antônio Conselheiro ainda pode ressurgir para liderar o seu povo e tomar
parte na luta diária dos brasileiros contra as injustiças dos poderosos.
Canudos não se rendeu e a sua memória não morrerá!
Jardim-MS,
09.09.2017.
Marcos V. Teixeira