domingo, 17 de fevereiro de 2019

A ressurreição de Antônio Conselheiro e a de seus 12 apóstolos


Carta escrita ao amigo Moacir C. Lopes, que teria completado 90 anos naquele 2017. Acabei não publicando o texto, que aqui vai como forma de recomendar a leitura do romance A ressurreição de Antônio Conselheiro e a de seus 12 apóstolos.


“Canudos era imenso cemitério”.
Moacir C. Lopes

Prezado amigo Moacir,

Só agora, passados 10 anos da publicação e 7 que nos deixou, venho lhe contar sobre minhas primeiras impressões que A ressurreição de Antônio Conselheiro e a de seus 12 apóstolos me trouxe em primeira leitura. Aproveitei uma viagem a Minas e uma pausa forçada no trabalho para enfim percorrer os caminhos e descaminhos dos inúmeros personagens da obra, sertão a dentro. Nisto, aliás, e pelo seu caráter histórico, me lembrou o O almirante negro, Revolta da Chibata, a vingança, outra obra da qual gosto muito.
A quantidade de narradores e a estrutura da obra me trouxe também a lembrança de Crônica da casa assassinada, do Lúcio Cardoso. Em companhia de Fogueteiro, Jardelina, Pajeú e tantos outros, fui alinhavando a história do santo Antônio Conselheiro e do terríveis combates travados no sertão. Difícil não se arrebatar com tanto horror, quando diante de nossos olhos passam pessoas decapitadas, corpos empalados à beira dos caminhos, rostos mumificados com o semblante da morte, ventres rasgados e histórias de fetos arrancados das barrigas maternas. Não há como não refletir sobre a força desmedida utilizada pelo governo e sobre o universo social estabelecido em Canudos. Tal reflexão, no entanto, advém pelos personagens vitimados e se alia ao ponto de vista do povo a vencer e a ser vencido.
O tema da ressurreição, já presente no título do livro, me fez pensar que o enredo poderia seguir caminho semelhante a Onde repousam os náufragos. Enquanto lia, fui imaginando a possibilidade de Conselheiro e seus doze apóstolos ressuscitarem e tornarem a combater, vencendo a batalha impossível. Confesso que fiquei surpreendido quando ao final a obra avança momentaneamente cem anos e depois realiza digressão situando os personagens em lugares outros como nas favelas do Rio de Janeiro. O caminho trilhado na obra é compreensível, pois me pareceu que se lhe fez necessária uma certa adesão ao fato histórico.
Mas se o mítico, mesmo presente, não alça voo na direção que desejei, a vereda trilhada é muito instigante, pois, de forma alegórica, desenha a condição social do povo brasileiro, sempre subjugado por uma elite injusta e poderosa. A dúvida da ressurreição, com o estabelecimento de sósias de personagens, de combatentes escondidos em buracos e sobre as árvores assombrando a missão dos soldados, é de fato um ponto alto da obra.
A história da Canudos vai se completando à medida que o leitor avança pelas várias versões dos narradores acerca dos combates realizados. Confesso que algumas vezes considerei a repetição de algumas cenas, nas várias narrativas, algo que tornou o enredo lento ou, como já dado de antemão, revisitado. Indaguei-me um pouco também acerca do conhecimento que todos os personagens tinham das batalhas futuras. Mas são detalhes que não diminuíram, em minha leitura, a importância da obra. Por sinal, quando as narrativas esquecem um pouco as expedições militares e o cotidiano dos personagens surge de forma forte a obra apresenta o seu melhor sumo.
Nesse sentido, merece atenção especial o capítulo “Evangelho segundo João Abade”, também intitulado “A espada do guerreiro”. Pareceu-me uma das melhores partes da obra, quando o histórico enfraquece permitindo o fortalecimento do romanesco. Curiosamente, é quando um personagem resiste um pouco a seguir os andarilhos rumo a Canudos. A estória de João Abade se articula bem com Jardelina, outro universo ficcional de relevo na obra, e, claro, com as mulheres relacionadas a ele.
Isso não quer dizer que as outras partes tenham ficado aquém. Do contrário, revelam que o autor é um engenhoso criador de personagens e que a quantidade deles não prejudica a constituição do todo. Como em O almirante negro, funcionam como condição necessária para que não roubem a atenção da dimensão histórica. Lá, a Revolta da chibata. Aqui, a guerra de Canudos. Os episódios e os lugares em que ocorrem passam a funcionar como verdadeiros protagonistas da obra, ou, se quisermos, o conjunto dos inúmeros personagens.
Se Fogueteiro reencarnou em terras do sul e outros personagens apareceram nas favelas do Rio de Janeiro, é sinal de que o santo Antônio Conselheiro ainda pode ressurgir para liderar o seu povo e tomar parte na luta diária dos brasileiros contra as injustiças dos poderosos. Canudos não se rendeu e a sua memória não morrerá!

Jardim-MS, 09.09.2017.


Marcos V. Teixeira