sábado, 26 de julho de 2014

Poema taxativo


Não há sentido na alvorada
no amanhecer diário e monótono
e milagroso.
Não há sentido nas religiões
e nas suas diversas dicotomias.
Uma voz vinda não se sabe de onde
sussurra baixinho
que deus não vai ajudar,
que a eternidade não existe,
que a alma se dissolveu nos neurônios.
O amor não existe ou é fogo
ou indefinível sinal de teimosia.
A vida se empilha nos prédios
esparrama-se pelos cantos
à noite cobre-se com papelões
embaixo de marquises.
O vai-e-vem do dia-a-dia
me deixa perplexo e vazio.
O corpo
esse pacote vertical de sangue
apodrece a cada instante vivido.
Uma voz vinda de qualquer lugar
tem coragem de dizer
que os médicos não vão ajudar.
Mas é preciso viver
Alimentar o ser
vestir o pé, o peito, botar camisa
o cinto corrige o corpo disforme.
Afinal, viver é inevitável.
Então levanto-me para a vida
lavo meu rosto, visto-me
escovo meus dentes cariados
disfarço meu mal cheiro
perfumo quem apodrece vivo.
— É preciso viver! digo eu resoluto.
Pego o elevador
cumprimento as pessoas.
No ônibus
dou bom dia ao motorista
ofereço moedas ao cobrador.
No trabalho sorrio
cumpro todas as obrigações
sem demonstrar cansaço.
Volto apertado no ônibus
(já não digo boa tarde, boa noite).
Faço a compra do mês
e durante os dias que se seguem
vejo a despensa se esvaziar
e me esvazio também.
Um homem que vive só
sabe que a vida não vale a pena
qualquer jeito de viver.
Em casa, sozinho no escuro,
no silêncio, na ausência de tudo
não é preciso fingir
não é necessário saber.
Os acontecimentos do mundo
sevem para quê?
No entanto a solidão
não suporta a ausência dos amigos.
Por fim recorro ao telefone
(este aparelho útil aos negócios)
sei que não vão poder vir,
sempre ocupados em enriquecer,
mas haverá uma festa na casa da Joana
ou da Letícia ou da Marília, pouco importa
é uma amiga alegre.
Então visto-me para a vida alegre
enfrento o trânsito noturno
a correria selvagem da cidade
chego vivo. Todos me cumprimentam
Olá! Quanto tempo! Você sumiu!
Puxo a cadeira, pego o copo vazio
bebo, levanto, abraço todos
a vida parece valer a pena,
canto às mulheres traídas
à nossa vida difícil.
Então a vida é possível?
Essa vida alegre, fingida
e besta dos programas da tv?
Volto bêbado para casa
o apartamento que chamo de lar
me recebe indiferente.
O dia amanhece,
levanto-me, visto-me,
apronto-me para sair,
mas não saio.
Não posso continuar
tão preocupado em sustentar um corpo
volto para a cama, tento dormir.
Que venha o silêncio, a fome,
o mau cheiro, que o telefone toque.
Deitado, espero pela morte, que não vem
teimosa morte...
tenhamos paciência com ela.


Marcos Teixeira
21.02.06

 

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