A aparição de Desjejum, pouco tempo após a publicação de Insolvência, primeira obra de Fernando Campos, descobre, no sentido
de revelar, um poeta maduro. O sabor de novidade a circunvagar a figura de seu
autor, convertido em nome na capa de um livro, cede lugar, à mesa, para a
imagem de um anfitrião, que, pelos pratos oferecidos, se apresenta como um criador
com trajetória longa e profícua. Seu voo não é curto, nem bissexto é o
escritor. O lirismo de Insolvência,
já revelador nesse sentido, se construiu a partir do trabalho com a palavra e não
requer uma abordagem extrínseca. A obra já revelava um autor experiente, pois, antes
de Insolvência, Fernando Campos já
havia trabalhado em outros livros e, como degustador experiente, manteve-os engavetados
para provação. É o caso de Desjejum,
que, guardado há mais de uma década, resistiu ao tempo e é submetido agora ao
exigente paladar do leitor.
Diversas imagens se descortinam ao longo da
presente obra. Alinhavá-las não é trabalho fácil e, certas vezes, em matéria de
poesia, é tarefa secundária quando não dispensável. A leitura pode buscar pelas
relações exteriores à obra, o que despertará algum interesse. Não é possível,
no entanto, deixar de abordá-la enquanto construção poética em que a linguagem
cria um mundo novo. O real, nesse sentido, se existir, funcionará apenas como
estímulo ao novo universo textual, que se cria em linguagem. Ao mesmo tempo,
sabemos, toda construção literária se dirige em certa medida ao centro de seu
criador, com a qual se identifica de variado modo.
Dentre as imagens que encontramos nesta
obra, várias dialogam com um universo religioso numa contraposição entre o ser
e o mundo. O título da obra abrange esta significação: se a ideia de jejum,
para os religiosos, está ligada à ascese, isto é, a uma renúncia aos valores e
desejos mundanos, ao próprio corpo, como forma de buscar uma dada dimensão
espiritual ou mesmo transcendental, o desjejum
aponta para caminho diverso. Para compreendê-lo, os versos do poeta sugerem um
procedimento a se adotar: “para que a poesia sobreviva / urge despertar os
filtros / e trazê-los desbragados”. Tanto no sentido de dispositivo quanto no
de amavio, filtro se identifica com a ideia de libertação, de buscar ver de
outro modo ou, no primeiro caso, com olhos livres, como aquele que se depara
com a vida pela primeira vez. Para este, o mundo, ainda que pronto, não se
encontra explicado. Difícil, no entanto, é se descobrir livre quando uma certa
ideia de mundo, inventada antes de nós, já nos fora inculcada.
Nesse sentido, se surpreenderá o leitor
que ao final da leitura do pórtico “Desjejum” se pegar pensando numa maçã.
Ainda que se defenda alegando se recordar do famoso poema de Manuel Bandeira, a
identificação entre o fruto proibido de Eva e a maçã é quase inevitável, pois
estes símbolos já estão imbricados na cultura popular. Mas se lá, devorá-la é
um descaminho, aqui, ousar mordê-la é talvez necessário para que o poético se
revele e nós, leitores, nos iniciemos na poesia de Fernando Campos. Em seu
universo, tal como a musa de Insolvência,
a fruta não tem nome. Identifica-se com a própria poesia: em nossas mãos
(despidas) ela pode denunciar seu passado de flor e de queda.
Outros elementos, nessa perspectiva,
surgirão para o leitor como vinho, pão, sopro de vida, responso, templo, dentre
vários outros. Alguns poemas beiram a ideia de batismo, no sentido que lhe
damos aqui, de iniciação à poesia. Em “A santa cólera”, cabe à mão esquerda,
que escreve torto, ser direcionada pela caneta, que se livra de suas loucuras
em áspero cimento-túmulo. O ato que expulsa o mal, como um batismo, faz o poeta
reencontrar a própria voz em novo estado harmônico. Em “Nudez”, o terreno
fértil da epiderme se depara com a bofetada, a cara contra a parede. Por fim,
em “Clarividente”, a poesia pontua: para seguir um caminho diferente,
prefere-se a seda, a voz maviosa ou mesmo o gesto simples. A poesia de Fernando
Campos, nesse sentido, muitas vezes sugere e sussurra, outras vezes provoca o
riso, essa herança preciosa dos modernistas.
A fruta que abre o livro torna a aparecer
no “Poema vespertino”. Continua à frente do eu-poético, que a observa.
Esquecida, chegam-nos as vozes de longe. Crianças e velhos frequentam, então, o
poema. O silêncio se faz e as palavras, talvez, permaneçam em estado de
dicionário. Devorar esta fruta é, de certo modo, também renunciar ao ato e
esquecê-la. Diminuída a exterioridade, se a palavra puder ser esta, o céu azul
da tarde poderá ser notado como no verso de Drummond.
Assim, a poesia de Fernando Campos nos
traz o seu melhor sumo, de forma um tanto desinteressada, buscando a
compreensão do ser, que se investiga. É nesse sentido que nos deparamos, por
exemplo, com o deus das crianças, que aparece no livro com leveza e
graciosidade. As imagens do cotidiano e as rememorações são um ponto alto: o
retrato que instiga as lembranças da infância, com quintal, parreira e
caramujos; as crianças fazendo o dever da escola ou surgindo no momento em que
se trabalha a farinha e o fermento; o pai, modelo inexprimível; entre outras.
Essas imagens, ou se poderia dizer essa
linguagem, pois tudo é trabalho poético, permitem que se constate o domínio que
autor possui dos procedimentos literários, das técnicas que a poesia exige e
que seu criador veio experimentando ao longo de sua vida. Detentor de um estilo
próprio, Fernando Campos elabora ao
mesmo tempo uma poesia intertextual. Muitas vezes, técnica e diálogo vêm
juntos. Observe-se, por exemplo, um viés paródico em determinados versos que,
ao trazer uma estrutura conhecida pelo leitor, surpreende ao apresentar um
elemento novo ou inusitado. Esse procedimento se encontra em vários poemas e
pode ser visto em versos como “vejo a vida como a vida mente” ou como “ainda
ontem chorei de maldade” ou ainda “dei
pra maldizer o passado”. Outras vezes, mais sofisticado, o procedimento
intertextual se faz de forma diferente como ocorre, por exemplo, no verso “hoje
vi chover como cão sem dono”, que se faz acompanhar, adiante, pela frase “Oh,
modorra e pluma!”, num evidente diálogo com João Cabral de Melo Neto. As
alusões são inúmeras e é rico o diálogo com a tradição.
Fernando Campos, que também pratica outras
artes, é um artesão incansável. Sua poesia é fruto de muito trabalho e
reflexão. Experiente, afasta o poema infante como quem recusa uma refeição,
para tomá-lo mais adiante, buscando o sabor desconhecido, a sonoridade
conveniente, a agudeza da palavra. Se algumas vezes é mais engenhoso e o poema
surge denso, indigesto à primeira vista, não faz mal. Há sempre aqueles que,
entre os convivas, preferem um sabor agridoce acompanhando o repasto.
Marcos Vinícius
Teixeira
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