terça-feira, 18 de julho de 2017

Poesia indelével





A aparição de Desjejum, pouco tempo após a publicação de Insolvência, primeira obra de Fernando Campos, descobre, no sentido de revelar, um poeta maduro. O sabor de novidade a circunvagar a figura de seu autor, convertido em nome na capa de um livro, cede lugar, à mesa, para a imagem de um anfitrião, que, pelos pratos oferecidos, se apresenta como um criador com trajetória longa e profícua. Seu voo não é curto, nem bissexto é o escritor. O lirismo de Insolvência, já revelador nesse sentido, se construiu a partir do trabalho com a palavra e não requer uma abordagem extrínseca. A obra já revelava um autor experiente, pois, antes de Insolvência, Fernando Campos já havia trabalhado em outros livros e, como degustador experiente, manteve-os engavetados para provação. É o caso de Desjejum, que, guardado há mais de uma década, resistiu ao tempo e é submetido agora ao exigente paladar do leitor.
Diversas imagens se descortinam ao longo da presente obra. Alinhavá-las não é trabalho fácil e, certas vezes, em matéria de poesia, é tarefa secundária quando não dispensável. A leitura pode buscar pelas relações exteriores à obra, o que despertará algum interesse. Não é possível, no entanto, deixar de abordá-la enquanto construção poética em que a linguagem cria um mundo novo. O real, nesse sentido, se existir, funcionará apenas como estímulo ao novo universo textual, que se cria em linguagem. Ao mesmo tempo, sabemos, toda construção literária se dirige em certa medida ao centro de seu criador, com a qual se identifica de variado modo.
Dentre as imagens que encontramos nesta obra, várias dialogam com um universo religioso numa contraposição entre o ser e o mundo. O título da obra abrange esta significação: se a ideia de jejum, para os religiosos, está ligada à ascese, isto é, a uma renúncia aos valores e desejos mundanos, ao próprio corpo, como forma de buscar uma dada dimensão espiritual ou mesmo transcendental, o desjejum aponta para caminho diverso. Para compreendê-lo, os versos do poeta sugerem um procedimento a se adotar: “para que a poesia sobreviva / urge despertar os filtros / e trazê-los desbragados”. Tanto no sentido de dispositivo quanto no de amavio, filtro se identifica com a ideia de libertação, de buscar ver de outro modo ou, no primeiro caso, com olhos livres, como aquele que se depara com a vida pela primeira vez. Para este, o mundo, ainda que pronto, não se encontra explicado. Difícil, no entanto, é se descobrir livre quando uma certa ideia de mundo, inventada antes de nós, já nos fora inculcada.

Nesse sentido, se surpreenderá o leitor que ao final da leitura do pórtico “Desjejum” se pegar pensando numa maçã. Ainda que se defenda alegando se recordar do famoso poema de Manuel Bandeira, a identificação entre o fruto proibido de Eva e a maçã é quase inevitável, pois estes símbolos já estão imbricados na cultura popular. Mas se lá, devorá-la é um descaminho, aqui, ousar mordê-la é talvez necessário para que o poético se revele e nós, leitores, nos iniciemos na poesia de Fernando Campos. Em seu universo, tal como a musa de Insolvência, a fruta não tem nome. Identifica-se com a própria poesia: em nossas mãos (despidas) ela pode denunciar seu passado de flor e de queda.
Outros elementos, nessa perspectiva, surgirão para o leitor como vinho, pão, sopro de vida, responso, templo, dentre vários outros. Alguns poemas beiram a ideia de batismo, no sentido que lhe damos aqui, de iniciação à poesia. Em “A santa cólera”, cabe à mão esquerda, que escreve torto, ser direcionada pela caneta, que se livra de suas loucuras em áspero cimento-túmulo. O ato que expulsa o mal, como um batismo, faz o poeta reencontrar a própria voz em novo estado harmônico. Em “Nudez”, o terreno fértil da epiderme se depara com a bofetada, a cara contra a parede. Por fim, em “Clarividente”, a poesia pontua: para seguir um caminho diferente, prefere-se a seda, a voz maviosa ou mesmo o gesto simples. A poesia de Fernando Campos, nesse sentido, muitas vezes sugere e sussurra, outras vezes provoca o riso, essa herança preciosa dos modernistas.
A fruta que abre o livro torna a aparecer no “Poema vespertino”. Continua à frente do eu-poético, que a observa. Esquecida, chegam-nos as vozes de longe. Crianças e velhos frequentam, então, o poema. O silêncio se faz e as palavras, talvez, permaneçam em estado de dicionário. Devorar esta fruta é, de certo modo, também renunciar ao ato e esquecê-la. Diminuída a exterioridade, se a palavra puder ser esta, o céu azul da tarde poderá ser notado como no verso de Drummond.
Assim, a poesia de Fernando Campos nos traz o seu melhor sumo, de forma um tanto desinteressada, buscando a compreensão do ser, que se investiga. É nesse sentido que nos deparamos, por exemplo, com o deus das crianças, que aparece no livro com leveza e graciosidade. As imagens do cotidiano e as rememorações são um ponto alto: o retrato que instiga as lembranças da infância, com quintal, parreira e caramujos; as crianças fazendo o dever da escola ou surgindo no momento em que se trabalha a farinha e o fermento; o pai, modelo inexprimível; entre outras.
Essas imagens, ou se poderia dizer essa linguagem, pois tudo é trabalho poético, permitem que se constate o domínio que autor possui dos procedimentos literários, das técnicas que a poesia exige e que seu criador veio experimentando ao longo de sua vida. Detentor de um estilo próprio, Fernando Campos elabora ao mesmo tempo uma poesia intertextual. Muitas vezes, técnica e diálogo vêm juntos. Observe-se, por exemplo, um viés paródico em determinados versos que, ao trazer uma estrutura conhecida pelo leitor, surpreende ao apresentar um elemento novo ou inusitado. Esse procedimento se encontra em vários poemas e pode ser visto em versos como “vejo a vida como a vida mente” ou como “ainda ontem chorei de maldade” ou ainda “dei  pra maldizer o passado”. Outras vezes, mais sofisticado, o procedimento intertextual se faz de forma diferente como ocorre, por exemplo, no verso “hoje vi chover como cão sem dono”, que se faz acompanhar, adiante, pela frase “Oh, modorra e pluma!”, num evidente diálogo com João Cabral de Melo Neto. As alusões são inúmeras e é rico o diálogo com a tradição.
Fernando Campos, que também pratica outras artes, é um artesão incansável. Sua poesia é fruto de muito trabalho e reflexão. Experiente, afasta o poema infante como quem recusa uma refeição, para tomá-lo mais adiante, buscando o sabor desconhecido, a sonoridade conveniente, a agudeza da palavra. Se algumas vezes é mais engenhoso e o poema surge denso, indigesto à primeira vista, não faz mal. Há sempre aqueles que, entre os convivas, preferem um sabor agridoce acompanhando o repasto.


Marcos Vinícius Teixeira

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Caratinga na tela de Gato


A pintura abaixo é do artista plástico Gato, que fez uma série de quadros abordando a cidade de Caratinga-MG. Presente que me foi dado pelo poeta Fernando Campos, a tela traz elementos que desapareceram ou foram danificados por obras ao longo do tempo. O Cine Brasil, que cheguei a frequentar, foi destruído. Já o coreto de Oscar Niemeyer passou por estranha intervenção e foi descaracterizado. Virou um estorvo. Guardo a cidade na pintura do Gato dependurada em minha morada e em minha memória. A Petra Itaúna que se cuide!




sábado, 26 de julho de 2014

Poema taxativo


Não há sentido na alvorada
no amanhecer diário e monótono
e milagroso.
Não há sentido nas religiões
e nas suas diversas dicotomias.
Uma voz vinda não se sabe de onde
sussurra baixinho
que deus não vai ajudar,
que a eternidade não existe,
que a alma se dissolveu nos neurônios.
O amor não existe ou é fogo
ou indefinível sinal de teimosia.
A vida se empilha nos prédios
esparrama-se pelos cantos
à noite cobre-se com papelões
embaixo de marquises.
O vai-e-vem do dia-a-dia
me deixa perplexo e vazio.
O corpo
esse pacote vertical de sangue
apodrece a cada instante vivido.
Uma voz vinda de qualquer lugar
tem coragem de dizer
que os médicos não vão ajudar.
Mas é preciso viver
Alimentar o ser
vestir o pé, o peito, botar camisa
o cinto corrige o corpo disforme.
Afinal, viver é inevitável.
Então levanto-me para a vida
lavo meu rosto, visto-me
escovo meus dentes cariados
disfarço meu mal cheiro
perfumo quem apodrece vivo.
— É preciso viver! digo eu resoluto.
Pego o elevador
cumprimento as pessoas.
No ônibus
dou bom dia ao motorista
ofereço moedas ao cobrador.
No trabalho sorrio
cumpro todas as obrigações
sem demonstrar cansaço.
Volto apertado no ônibus
(já não digo boa tarde, boa noite).
Faço a compra do mês
e durante os dias que se seguem
vejo a despensa se esvaziar
e me esvazio também.
Um homem que vive só
sabe que a vida não vale a pena
qualquer jeito de viver.
Em casa, sozinho no escuro,
no silêncio, na ausência de tudo
não é preciso fingir
não é necessário saber.
Os acontecimentos do mundo
sevem para quê?
No entanto a solidão
não suporta a ausência dos amigos.
Por fim recorro ao telefone
(este aparelho útil aos negócios)
sei que não vão poder vir,
sempre ocupados em enriquecer,
mas haverá uma festa na casa da Joana
ou da Letícia ou da Marília, pouco importa
é uma amiga alegre.
Então visto-me para a vida alegre
enfrento o trânsito noturno
a correria selvagem da cidade
chego vivo. Todos me cumprimentam
Olá! Quanto tempo! Você sumiu!
Puxo a cadeira, pego o copo vazio
bebo, levanto, abraço todos
a vida parece valer a pena,
canto às mulheres traídas
à nossa vida difícil.
Então a vida é possível?
Essa vida alegre, fingida
e besta dos programas da tv?
Volto bêbado para casa
o apartamento que chamo de lar
me recebe indiferente.
O dia amanhece,
levanto-me, visto-me,
apronto-me para sair,
mas não saio.
Não posso continuar
tão preocupado em sustentar um corpo
volto para a cama, tento dormir.
Que venha o silêncio, a fome,
o mau cheiro, que o telefone toque.
Deitado, espero pela morte, que não vem
teimosa morte...
tenhamos paciência com ela.


Marcos Teixeira
21.02.06